11/08/2008

Texto de Pedro Mestre editado no "Diário do Alentejo", 8 Agosto 2008




Um mestre da viola campaniça

Era uma vez uma pequena povoação chamada Aldeia Nova, onde, nos anos 60, existiam sete tocadores de viola campaniça. Ali, por haver tantos tocadores ou por haver muita mocidade, cantava-se muito bem, "armando-se balhos" e festas todos os domingos e dias santos. Durante o Verão, as festas decorriam na rua, nomeadamente aquelas que eram consagradas a S. João, Santa Isabel, S. Pedro e Santa Maria, altura em que se erguiam mastros e se convivia e dançava em seu redor. No Inverno recorria-se a casas amplas, às vezes arrecadações, e todas as semanas decorriam "bailaricos" e "cantorias", quase sempre acompanhados ao som da campaniça.

As "moças" cantavam muito bem, frequentemente sozinhas, fazendo a polifonia tradicional do cante alentejano. Ali, a tradição tinha uma regra fixa: o alto (terceira voz superior à melodia) era cantado apenas por uma só voz, masculina ou feminina. De resto, imperava a liberdade e conveniência do momento: tanto cantavam sozinhas as mulheres, como os homens, ou todos em conjunto. Não havia fainas agrícolas em que não se ouvisse cantar e os tempos de lazer eram invariavelmente ocupados a cantar e a bailar.

Um dia tudo terminou abruptamente: em 1971, a Aldeia Nova desapareceu sob as águas da barragem do Monte da Rocha, inaugurada nesse ano, e os seus habitantes tiveram que se instalar em povoações próximas. Natural da Aldeia Nova, residente em Ourique-Gare, Francisco António, conhecido por Chico Bailão, foi o mestre que me passou o saber da arte de dedilhar a viola campaniça. Durante as aulas, que decorriam aos domingos à tarde em sua casa, o mestre contava-me todos os bons momentos vividos na sua pequena aldeia aquando da mocidade, uma moda atrás da outra. A cada aula que passava, percebia-se a alegria do mestre em ensinar-me a sua arte, que trazia do seu pai e que poderia continuar viva, mesmo sem a sua presença.

Dedico todas estas palavras, numa forma de agradecimento, ao grande mestre Chico Bailão e ao seu sobrinho Manuel Bento.




Pedro Mestre na Única- Expresso, 9 Agosto 2008


"Cresci a ouvir um programa na Rádio Castrense em que as pessoas participam, cantando as modas tradicionais e dizendo poesia, e eu telefonava e cantava em directo, à capela, aqueles temas que eu ouvia a minha mãe ou os homens na tasca a cantar. O mestre Manuel Bento, que nós consideramos o mestre dos mestres, é desse tempo em que a viola campaniça era peça fundamental das tascas. Uma tasca tinha de ter uma viola, para poder acompanhar os cantos de improviso, também chamados «cantos de despique». O despique é uma desgarrada, com uma melodia, e uma rima, e regras próprias. O ponto é uma palavra da rima, com que todas as outras quadras têm de rimar. Quando algum dos cantores diz uma palavra que já foi repetida na rima, isso chama-se «pisar o ponto». Quem pisa o ponto sai da roda e tem de pagar cinco litros de vinho. Os cantares ao despique falam de tudo, da satisfação de estar juntos, da vida dura do campo, da velhice, da morte, da actualidade, dos problemas do país. Às vezes há contendas pessoais que se resolvem ao despique. Uma vez, numa aldeia, houve um pai que tinha desprezado o filho, e quando o filho já era homem, encontravam-se na taberna e cantavam ao despique. A viola campaniça tem uma cintura muito acentuada, muito delicada, que forma um oito, e uma sonoridade muito doce, e característica. Tem cordas em aço, por vezes em latão, é dedilhada com o polegar da mão direita e ponteada segundo uma técnica que é diferente de todos os outros instrumentos. Nós costumamos dizer que a campaniça é uma voz que se junta às outras vozes, porque ela canta a melodia do princípio ao fim. A campaniça tomou conta da minha vida. Toco todos os dias, várias horas. Fundei corais, ajudei a criar uma escola-oficina em Castro Verde, tenho um programa de campaniça para as escolas do 1.º ciclo. Fui já várias vezes ao Brasil, a encontros de violas em que juntamos a campaniça com a viola caipira, que têm as mesmas origens. No Brasil eles também têm repentistas. Gostava que os instrumentos tradicionais portugueses fossem ensinados nos conservatórios, a campaniça, a braguesa, a beiroa.... Talvez seja por haver pouca coisa escrita, poucas partituras. Alguns miúdos acham que a música tradicional é uma coisa de velhos, sem interesse para eles. Mas eu acho que se eles não se interessam é porque ninguém lhes mostra.


Pedro Mestre editou «Encontro de Violas - Viola Campaniça e Viola Caipira», um disco que resulta do intercâmbio entre tocadores de viola campaniça e viola caipira, que irá ser apresentado no próximo dia 13 de Agosto, em Aljustrel"